quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Da Liberdade

Liberto Diário,

Atendendo a pedidos - sim, essa blogueira foi arrancada do conforto de seu livro a pedido de uma querida amiga que perguntou porque eu não mais postava... aleguei preguiça, mas, como tinha assunto para ser tratado - eis-me aqui!
O que eu queria tratar hoje, e talvez nos próximos posts, é um assunto recorrente quando aviso ao pessoal que estou vestidinha por aí em algum lugar inóspito. Ora dizem: "Ah, a sensação deve ser de liberdade", ou falam algo do tipo "Parabéns pela coragem"... fico imaginando como essa tal liberdade e essa tal coragem me influenciam nesse processo de vanessização... e que, apesar do que possa parecer, não se trata exatamente nem de liberdade nem de coragem. Examinemos estes dois tópicos, pois!
Primeiro, a liberdade. Quando digo que andei por aí de vestido, ou de legging ou de qualquer coisa feminina, falam para mim: "deve ser libertador", ou "ah, e a sensação de liberdade?". Bom, respondo sim e não...
Em primeiro lugar, porque a sensação não é propriamente de liberdade. Na verdade, quando saio na rua assim eu fico é com um medo dos infernos, algo semelhante àquela velha história que contam de Napoleão, quando, ele ainda novo numa guerra, foi zombado por seus outros colegas veteranos: "olha como ele está com medo..." ao que ele respondeu: "Se vocês tivessem a metade do medo que estou agora, vocês nem viriam ao campo de batalha"...
É mais ou menos por aí... ainda não tive a sorte (ou o azar, acho que estaria mais para isso) de ser pego por algum conhecido ou vizinho assim (e olha que arrisquei bastante, para desalento e críticas mil de minha mui cautelosa senhora), mas um dia, fatalmente, isso irá acontecer. Se acontecer, confesso, não sei como reagir. Não sei mesmo. Talvez esse assunto renda mais algumas postagens, em que falaria sobre os tais dos anticorpos que crio contra as críticas, coisa que já devo ter tratado bem en passant aqui...
Então tá, diria o/a enfastiado/a leitor/a. Se não se trata de liberdade o sentimento de você andar na rua, trata-se do quê?
Eu diria que é de completude, o que engloba mais do que cantaria o Só Pra Contrariar, "essa tal liberdade"...
Afinal de contas, eu sou livre para andar com uma melancia pendurada no pescoço, ninguém me obrigaria ao contrário. Só as pessoas achariam esquisito, engraçado e minha coluna vertebral me perguntaria o que diabos ela fez a mim para merecer tamanho castigo. Ninguém me obriga a andar do jeito que ando (infelizmente), trata-se apenas (sim, apenas meeeesmo, por incrível que pareça) de uma convenção social que te obriga a andar como homem ou como mulher usando determinado tipo de roupa. Não existe uma polícia, uma patrulha que te obrigue a andar assim, a não ser o olhar curioso, crítico e/ou zombeteiro das pessoas. Fora isso, mais nada, Mais nada mesmo.
E, quando falei acima em completude, o que quis dizer? Que quando uso uma roupitcha bonitinha, me sinto completa. Completa, não livre. E completa no sentido: "ah, não preciso de mais nada pra ser feliz" (claro, se depositarem alguns milhões de dólares na minha conta e me disponibilizarem uma biblioteca, ficaria imensamente grata, maaaaassss...)
Completude, é isso. É mais ou menos o sentimento que tive quando andava pelas ruas de Friburgo ou naquele McDonalds em Vila Isabel  com a Adaptada, me comparando com as meninas que usavam as mesmas botas, eu pensava satisfeita: "não preciso mais sofrer, eu estou como elas, eu estou completa.."
Claro, não vamos exagerar. Para ser completa, completa, faltaria mil e uma coisas... primeiramente, uma boa depilação. Tratamento hormonal. Um par de seios. Uma vida adaptada aos padrões femininos. E, last but not least, why not? uma operação de redesignação sexual, para desalento mor de minha já desalentada senhora. Eu sei, falta muito. Mas quanto à casca, pelo menos, eu não deveria nada mais. Pelo contrário, pelos figurinos que via, até que estava bem arrumadinha, gorduras e testículos à parte...
Então, da próxima vez que ao ler minhas peripécias vocês se maravilhem dizendo que a sensação de liberdade é ótima, entendam que junto com a liberdade vem o medo, mas que nenhuma dessas sensações é maior, mais completa, mais gostosa, mais gratificante, e, principalmente, o que justificaria mais uma vida plena de sentido e gratidão (isso tudo mesmo, e talvez mais um pouco) do que a completude. Em suma, é aquele momento em que você poderia muito bem dizer que se morresse naquele exato momento, morreria muito, mas muito feliz. E eternamente grata a Deus pela oportunidade dada de ser, ainda que de maneira distorcida, quem você sempre quis ser, desde o óvulo da sua mãe ou o espermatozóide do seu pai...
Próximo tema: coragem...


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